Apenas 1 em cada 7 crianças e adolescentes que vivem em abrigos pode ser adotada
Das 39.383 crianças e adolescentes abrigadas atualmente, apenas 5.215 estão
habilitadas para adoção. Isso representa menos de 15% do total
Em uma ampla sala colorida, cercado por cuidadoras, um grupo de seis bebês,
com 6 meses de idade em média, divide o mesmo espaço, brinquedos e histórias de
vida. Todos eles vivem em uma instituição de acolhimento enquanto aguardam que a
Justiça defina qual o seu destino: voltar para a família biológica ou ser
encaminhados para adoção. A realidade das 27 crianças que moram no Lar da
Criança Padre Cícero, em Taguatinga, no Distrito Federal (DF), repete-se em
outras instituições do país. Enquanto aguardam os trâmites judiciais e as
tentativas de reestruturação de suas famílias, vivem em uma situação indefinida,
à espera de um lar. Das 39.383 crianças e adolescentes abrigadas atualmente,
apenas 5.215 estão habilitadas para adoção. Isso representa menos de 15% do
total, ou apenas um em cada sete meninos e meninas nessa situação.
Aprovada em 2009, a Lei Nacional da Adoção regula a situação
das crianças que estão em uma das 2.046 instituições de acolhimento do país. A
legislação enfatiza que o Estado deve esgotar todas as possibilidades de
reintegração com a família natural antes de a criança ser encaminhada para
adoção, o que é visto como o último recurso. A busca pelas famílias e as
tentativas de reinserir a criança no seu lar de origem podem levar anos. Juízes,
diretores de instituições e outros profissionais que trabalham com adoção
criticam essa lentidão e avaliam que a criança perde oportunidades de ganhar um
novo lar.
“É um engodo achar que a nova lei privilegia a adoção. Em vez disso, ela
estabelece que compete ao Estado promover o saneamento das deficiências que
possam existir na família original e a ênfase se sobressai na colocação da
criança na sua família biológica. Com isso, a lei acaba privilegiando o
interesse dos adultos e não o bem-estar da criança”, avalia o supervisor da
Seção de Colocação em Família Substituta da 1ª Vara da Infância e da Juventude
do DF, Walter Gomes.
Mas as críticas em relação à legislação não são unânimes. O juiz auxiliar da
Corregedoria Nacional de Justiça Nicolau Lupianhes Neto avalia que não há
equívoco na lei ao insistir na reintegração à família natural. Para ele, a
legislação traz muitos avanços e tem ajudado a tornar os processos mais céleres,
seguros e transparentes. “Eu penso que deve ser assim [privilegiar a família de
origem], porque o primeiro direito que a criança tem é nascer e crescer na sua
família natural. Todos nós temos o dever de procurar a todo momento essa
permanência na família natural. Somente em último caso, quando não houver mais
solução, é que devemos promover a destituição do poder familiar”, defende.
O primeiro passo para que a criança possa ser encaminhada à adoção é a
abertura de um processo de destituição do poder familiar, em que os pais poderão
perder a guarda do filho. Antes disso, a equipe do abrigo precisa fazer uma
busca ativa para incentivar as mães e os pais a visitarem seus filhos,
identificar as vulnerabilidades da família e encaminhá-la aos centros de
assistência social para tentar reverter as situações de violência ou violação de
direitos que retiraram a criança do lar de origem. Relatórios mensais são
produzidos e encaminhados às varas da Infância. Se a conclusão for que o
ambiente familiar permanece inadequado, a equipe indicará que o menor seja
encaminhado para adoção, decisão que caberá finalmente ao juiz.
Walter Gomes critica o que chama de “obsessão” da lei pelos laços sanguíneos.
“Essa ênfase acaba demonstrando um certo preconceito que está incrustado na
sociedade que é a supervalorização dos laços de sangue. Mas a biologia não gera
afeto. A lei acaba traduzindo o preconceito sociocultural que existe em relação
à adoção.”
Uma das novidades introduzidas pela lei – e que também contribui para a
demora nos processos - é o conceito de família extensa. Na impossibilidade de a
criança retornar para os pais, a Justiça deve tentar a reintegração com outros
parentes, como avós e tios. Luana* foi encaminhada ao Lar da Criança Padre
Cícero quando tinha alguns dias de vida. A menina já completou 6 meses e ainda
aguarda a decisão da Justiça, que deverá dar a guarda dela para a avó, que já
cuida de três netos. A mãe de Luana, assim como a de vários bebês da
instituição, é dependente de crack e não tem condições de criar a filha.
O chefe do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública
de São Paulo, Diego Medeiros, considera que o problema não está na lei, mas na
incapacidade do Estado em garantir às famílias em situação de vulnerabilidade as
condições necessárias para receber a criança de volta. “Como defensoria,
entendemos que ela é muito mais do que a Lei da Adoção, mas o fortalecimento da
convivência familiar. O texto reproduz em diversos momentos a intenção do
legislador de que a prioridade é a criança estar com a família. Temos que
questionar, antes de tudo, quais foram os esforços governamentais destinados a
fortalecer os vínculos da criança ou adolescentes com a família”, aponta.
Pedro* chegou com poucos dias de vida ao Lar Padre Cícero. A mãe o entregou
para adoção junto com uma carta em que deixava clara a impossibilidade de criar
o menino e o desejo de que ele fosse acolhido por uma nova família. Mesmo assim,
aos 6 meses de vida, Pedro ainda não está habilitado para adoção. Os diretores
do abrigo contam que a mãe já foi convocada para dizer, perante o juiz, que não
deseja criar o filho, mas o processo continua em tramitação. Na instituição onde
Pedro e Luana moram, há oito crianças cadastradas para adoção. Dessas, apenas
duas, com graves problemas de saúde, têm menos de 5 anos de idade.
Enquanto juízes, promotores, defensores e diretores de abrigos se esforçam
para cumprir as determinações legais em uma corrida contra o tempo, a fila de
famílias interessadas em adotar uma criança cresce: são 28 mil pretendentes
cadastrados e apenas 5 mil crianças disponíveis. Para a vice-presidenta do
Instituto Brasileiro de Direito da Família, Maria Berenice Dias, os bebês
abrigados perdem a primeira infância enquanto a Justiça tenta resolver seus
destinos. “Mesmo que eles estejam em instituições onde são super bem cuidados,
eles não criam uma identidade de sentir o cheiro, a voz da mãe. Com tantas
crianças abrigadas e outras tantas famílias querendo adotar, não se justifica
esse descaso. As crianças ficam meses ou anos depositadas em um abrigo tentando
construir um vínculo com a família biológica que na verdade nunca existiu”,
critica.
Fonte: Gazeta do Povo, publicado em 25/05/2012
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